29.7.04

21 sonetos

1. um calor de canícula. os antigos chamavam canícula porque a época do calor coincide com a constelação do cão. a casa resfolega frigoríficos. barulhos eléctricos. e na rua as cigarras vão esfuracando prédios. um cão ladra, derretendo-se no passeio. uma gaivota passa com um riso de hiena. e o cão mostra os dentes às estrelas.

2. o guincho de um autocarro. uma travagem. a noite é espessa e escura. o ar é tão forte que o ar não consegue o tórax. o suor. o corpo nu e vazio. inchado de constelações e desespero. percorrer a rua com a língua. com a humilhação própria. com a revolta. de um lado para o outro.
um insecto antes de ser esmagado. o estômago depois do pesticida.

3. a impotência e a prisão. a tortura no crâneo. as plantas adaptadas ao calor. com as suas patas verdes a mexerem-se. o meu corpo de insectos.

4. a passagem da página. os restosw dos crustáceos. comer animais com muitas pernas. os homens a recolherem o lixo. o vagabundo que mora e morre naquela esquina.

5. as flores que se enchem de água e de pólen. as chaminés ao longe. a incompreensão de tudo. os carros passam passeando-se pela avenida. os candeeiros altos que iluminam. ninguém.

6. a doença que se prolonga. os outros que são felizes. as telhas de aba e canudo, vermelhas de argila. o céu onde se riscou uma estrela cadente. para sempre.

7. a poesia são aqueles caixotes do lixo onde as doenças e os ratos se propagam.

8. a rua caiada de sol.as vértebras do pescoço que se curvam perante a escrita. a penunbra da casa. o rame-rame da ventoinha.

9. pratos do alentejo nas paredes. um livro de saint john perse. uma carcassa meia comida. as cortinas paradas nas janelas. o calor abstracto.

10. um jornal de ontem. um copo vazio. uma caneta. uma carteira algo já usada. uma pulseira. uns óculos de sol e uns óculos de ver. a mesa de azulejos.

11. o murmúrio das pessoas na rua. o vento muito suave abana as ruas e o escuro. ouve-se um travão de um carro. pessoas saem e conversam.

12. o telemóvel sobre a mesa. a mesa é circular. duas canecas vazias e fausto a pensar ir buscar mais uma. está uma bela noite. cheira a incêndio. por essas serras e florestas a estas horas já deve estar tudo a arder. fausto acaba a caneca. vai ao bar buscar mais uma.

13. na rua passa um casal embriagado. ela está histérica e a discutir. talvez ele perca a paciência e lhe levante a mão. os insectos juntam-se no candeeiro. outras pessoas conversam na esplanada com copos. há a felicidade.

14. fausto sente o excesso de actividade física. recosta-se na cadeira e embriaga-se feliz. as casas são esquisitas. têm demasiadas janelas e isso perturba. houve uma altura em que tinha medo das casas. e elas estão por todo o lado e a isso se chama cidade.

15. há um toldo amarelo por cima. a noite começa a canibalizar as casas. os sentidos embaciam-se e tornam-se cambaleantes. o ar está cada vez mais inflamável. fausto bebe grandes golfadas de cerveja pela caneca.

16. fausto pensa que qualquer soneto é uma cadeira vazia na mesa onde fausto está sentado. apoia a cabeça numa mão. o cabelo cheira a fumo, e a noite é tão grande como a descida de um batiscafo à verdade.

17. o pânico que o bar feche e que a noite acabe. pedir mais uma caneca. tentar falar com o telemóvel. o chão é de cianeto hexagonal. parece uma colmeia ou uma fábrica.

18. fausto tinha fobia das casas. era como se elas olhassem para ele e o culpassem.

19. gostaria de estar só e tranquilo, a meditar transcendências. metido na pequena casa de madeira no meio da floresta. rodeado de livros e o inverno neve na floresta.

20. o mar é uma casa na floresta.

21. mais tarde ou mais cedo o incêndio chegaria a fausto. e como fausto é uma pessoa de papel arderia rapidamente no ar. como uma borboleta de fogo a voar na floresta.

5.7.04

adraga

fschhhhhhhhh... fcsch...... ondas. a areia. ondas na areia. grãos. grãos são a areia. um livro. agora um livro. paul eluárd. uma garrafa de água verde. água das pedras. a toalha de praia na praia. toc. toc. toc. as raquetes toc. toc. as ondas fschhhhhhhhh... fcsch...... o chapéu de sol. cores. azul. vermelho. amarelo. são as cores primárias. toc. toc. toc. as raquetes. uma mulher nova adormecida ao sol. fato de banho azul claro. a duna na anca. o mar fschhhhhhhhh... fcsch...... o sol a mover-se. devagar e imperceptível. as horas suspensas no calor. a praia. o vento levemente frio. o sol forte. a mulher adormecida. a mala de praia. o tecido tafetá. o mar fschhhhhhhhh... fcsch...... o calor poing. a humidade vzzlle. a bandeira amarela. a bandeira amarela brlu brlu ao vento. as ondas fschhhhhhhhh... fcsch......
as raquetas calaram-se. já não toc. toc. toc. agora apenas mar. agora apenas mar fschhhhhhhhh... fcsch...... a mulher nova dorme ao sol. o monte tem verde mediterrâneo do lado esquerdo e cinzento calcáreo do lado direito. o verde e o cinzento misturam-se. uma rocha afocinhada no mar. agora tirar uma fotografia a uma rocha afocinhada no mar. no mar fschhhhhhhhh... fcsch...... e a bandeira amarela brlu brlu ao ventoas pessoas na praia. em flocos sobre o areal. a mulher nova dorme reflectindo o sol. um insecto rastejante passa. o guarda sol. debaixo do guarda sol.
(foi nesta praia que o poeta se afogou, por isso fausto escreve objectivamente, adjectivando o menos possível. nem sequer escreve. enumera. porque a poesia morreu. se o poeta morreu então a poesia morreu com ele)
e a mulher dorme fêmea ao sol.
e o mar fschhhhhhhhh... fcsch......
e as raquetas recomeçaram toc. toc. toc.
e a bandeira amarela ao vento brlu. brlu. brlu.
e o sono de fausto rrrrr.... rrrr...

22.5.04

estar doente

a planície está vazia
de coração arrancado,
as veias estrangulam-se nos pés,
e fizeram tropeçar fausto

também édipo caminhou assim
com o coração pesados nos pés
antes e depois
de mutilar os olhos

que peso desce coração
aos pés tanto peso?

como se o centro do corpo
percutisse pulsações doentes
batidas de quem pede ajuda

(e o plexo solar
a pôr-se no horizonte)

8.5.04

o pai de fausto

estava com as pernas desatarrachadas da bacia, porque tinha estado a morrer durante três semanas há três anos. estava tecnicamente acamado. em linguagem popular estava aleijado.
não é que fausto tivesse assim uma pena tão profunda. antes pelo contrário. havia uma grande parte de si que gostava de o ver diminuído e dependente.
lembrava-se muito bem de todos os infinitos sermões, em que era requisitado burocraticamente por seu pai até ao gabinete, e que o ouvia humilhando-o intelectualmente com "discursos". discursos que invariavelmente o amesquinhavam em relação aos outros, a todos os outros, e que lhe davam um sentimento de culpa em relação ao mundo que continuava profundamente enquistado no seu ser.
e agora o pai de fausto estava acamado. fausto tinha que lhe levar o tabuleiro de jantar e ainda tinha que ouvir a sua voz autoritária e insolente a chamar para lhe ir buscar um papel ou para verificar pela enésima vez um estrato de conta.
um dia destes havia de lhe atirar o jantar na cara. queimando-o e demonstrando-lhe finalmente o que sentia.
mas por agora continuava a obedecer como se gostasse dele.

3.5.04

cadernos de fausto

tinham-lhe despejado cimento no coração, e assim sentia como que uma fossilização do plexo solar. tinha peso na respiração e o esforço do diafragma em erguer e esticar os pulmões para erspirar era aço inoxidável.
ficaria assim, deitado, na luta pelo oxigénio, a olhar inexpressivo as paredes, a pensar em tudo o que viveu e em tudo o que gostaria de ter vivido. a pensar, ventilando ideias com dificuldade, com o sangue espesso a empapar-se no cimento.
e ficou assim, a olhar. à espera. apenas à espera.

10.4.04

declaração de amor

a adriana e eu tivemos a beber e fumámos um charro. depois fomos para casa. e quando me fui deitar ela perguntou-me "como é que vieste aqui parar?"
ela tava cheia de vontade de tagarelar e eu de dormir. (távamos com mocas muito diferentes)
e ela pediu-me "faz-me uma declaração de amor"
e eu respondi "olha, já és parte da mobília da casa, pareces um rodapé"

hoje á tarde já fizemos as pazes sem termos chegado a ficar zangados.

3.4.04

à lareira

uma aranha caída
numa teia de brasas,
encolhe os seus tentáculos
na dor

a adriana dorme
enrolada no bem estar
ali no colchão

e eu contemplo
a evaporação da aranha
esperneando oito vezes
a sua morte

1.4.04

não consigo falar

por baixo dos pés, por debaixo de mil metros de profundidade, por baixo do húmus e das rochas concentracionárias, existe o mar. o mar a mil metros de profundidade, a apodrecer os ossos da cidade, ao fundo de um poço, existe o mar a mil metros de profundidade, por baixo das fundações e das, e dos lixos centenários, e dos por baixo dos pés, a mil metros de profundidade existe o mar.
o mar a apodrecer a terra toda, a infiltrar-se pelas bainhas da carne do mundo.

19.3.04

o meu coração remexe-se
estica os seus braços
como se se espreguiçasse

bate como um arquipélago
através das costelas
bombeando
caixas e caixas de sangue.

e a serpente mexe-se
como algo obsceno
e divide a erva em duas.

14.3.04

e os mortos espalhados pelos combóios, como estrofes partidas. alguns ainda sentados nos bancos, a olharem espantados através de ferros retorcidos, à espera que os socorram.

10.3.04

está a chegar a primavera, e com ela as flores e as mulheres cada vez mais bonitas, os dias grandes como naves de catedrais, a alegria. o calor. as cores e a vida ficam mais intensas, e com elas a vontade de me mutilar outra vez.

6.3.04

gostava de conhecer aquele lado, talvez. a água é funda, de uma profundidade metálica. as ondas marulham no molhe, com uma calmaria melancólica, de águas magestosas que descem em corrente.
cheira a maresia e do outro lado há um outro molhe, uma parede de betão suja pelos anos, gaivotas mudas no espaço, o motor de uma traineira ao longe, o céu pesado, nuvens mumificadas, estáticas de nostalgia. o céu como uma bifurcação irreversível.
foi já uns anos que essa possibilidade foi deixada para trás. mas eu explico melhor, assim com uma imagem: gostava de conhecer aquele lado, talvez, aquela margem ali, com as suas dunas e pássaros (passa uma lancha no meio da ria, a ondulação bate na muralha de pedras como um velho cargueiro a arrastar-se na água, um peixe salta, quebrando a monotonia).
gostava de conhecer aquela margem, talvez. mas penso que é melhor ficar deste lado e não ir passear pelas dunas e molhes, arbustos e pássaros daquele lado. se fosse à outra margem ficaria a saber como ela é. prefiro ficar por aqui, a pensar que aquele lado direito do rio é melhor que este lado esquerdo.
sei que quando conhecer aquelas terras além vou ficar desiludido. prefiro não ir. não me mexer. não quero saber. e consigo imaginar aquelas terras além muito mais poéticas do que estas.
e os faróis do porto, e os reservatórios de gás brancos e esféricos, e os reservatórios de crude cinzentos e cilindricos, e os guindastes, e as construções marítimas, e a profunda melancolia do céu encoberto e disto tudo. o céu nublado lembrando uma rapariga que se afogou no rio uns anos atrás. uma rapariga linda e que hoje já quase ninguém se lembra dela.

28.2.04

a lua levanta os seus cornos da água. e refulge em todo o seu esplendor doente. a luz horizontal na água. a água perpendicular ao seu olhar. um cancro no céu a comer as estrelas. a levantar os seus cornos metástases. a marca desceu sobre ele tatuado como um ferro quente. e a lua com a sua luz nocturna, com as suas sombras paludismo e enferrujadas. ele aguardava esta espécie de sinal para se levantar da sua morbilidade e pôr-se a caminho como um pôr-do-sol. a lua a levantar os seus cornos na água, com o sorriso saturno ao longe, por entre cadáveres de árvores e a hulha húmida. e a marca aparece para sempre, tautando a sua maneira de ser, acrescentando a si os elementos, uma respiração toráxica, um gesto por cima do braço,
e fica a olhar apático para um deus a apodrecer calcáreo, com a cabeça partida, no canto de um jardim abandonado, e as ervas daninhas, e as latas, e os plásticos, e o lixo a crescer por entre as ervas.

24.2.04

o mar protege-se, no fundo.
ecos de vozes femininas, e cantares do tamanho de anémonas, flutuam em flocos na superfície, como flocos de espuma, ou o pólen dos pinheiros a apodrecer nas poças de lama.
vozes encalhadas nos sargaços, através de todos aqueles metros cúbicos de água homeostática, através de toda aquela levitação de cabeça para baixo, e o azul debaixo de água, nem é bem azul, apenas aquela concha de luz em cima é o sol.
e o segredo. e o silêncio.
e a neurastenia de nunca lá chegarmos. de nos irmos afogar ao procurarmos a verdade. durante toda a vida. a procurar um ponto a partir do qual tudo faça sentido.
e o fundo do mar é impossível.

17.2.04

círculos só na mente
sítios de folhas,
e de húmus

sítios só na morte
trepidações tectónicas
dentro da cabeça

planícies vazias, oxidadas
pelo vento e pelas vedações
propriedades abandonadas
a terra de chumbo apenas coberta
por líquenes e vestígios
vegetais

e fausto desaguava
sem resistência
pelos cotovelos
do rio de heraclito
abaixo.

11.2.04

fármacos fagocitados,
a felicidade existe,
é elaborada em laboratórios
os batas brancas trabalham
para nos salvarem
da morte

apetece espiar casas com gente ausente,
apetece entrar em quintais alheios
e vazios, janelas para quartos,
e remexer as salas de moradores episódicos
e as estantes e os papéis e os livros

e quando acabar de tomar esta caixa
de comprimidos
vou ser muito muito feliz
e vou estar curado

7.2.04

e sim, sonhei com tranquilizantes. e foi bom. sonhei que era um muro de musgo. cujo caroço eram pedras amontoadas, pedras cinzentas, sujas de erosão, e de humidade, e isso era ser obviamente, floresta.
posso ter alguns membros amputados que isso não faz com que eu deixe de ser uma floresta.

29.1.04

procurar as grandes pedras na floresta, as grandes pedras redondas que estão cobertas pela chuva da floresta. e entrar dentro do granito. e dormir cristais.

23.1.04

preciso de conquistar os desertos, para me esconder debaixo das estrelas

21.1.04

enfim...é preciso, sem dúvida, beber muito. é preciso beber com determinação, como se houvesse um abismo por dentro que fosse preciso naufragar. é preciso portanto beber muito, e depois entra-se em coma. e depois está tudo acabado.
e isso não é uma morte dolorosa.

20.1.04

ser e tempo

por vezes a floresta não é um monstro. com lagostins nas suas raízes, as árvores submersas, todo um ecossistema da salvação, com a sopa da humidade e do húmus, e peixes voando por entre as copas. por vezes a floresta não é um monstro, mas tão só o labirinto que precisamos de resolver, esses fungos e musgos antropológicos, que pintalgam a casca das árvores. e os cogumelos a espreitar venenosos através da podridão, com o seu ar frágil e esfíngico. e a morte, e as mais raras visões do universo.

19.1.04

isto não foi hoje

um espaço em branco, que não foi quando se escreve, as minhas mãos, o cimento despejado é na aorta, essas bombas coronárias que fluxo, que correr no areal plano, polido de vento, e de chuvas. a correr com o fôlego pneumonias. o torso da serra, deitado na catástrofe, aqui houve um vulcão, de quem está no guincho a ver a serra, vamos ter de morrer outra vez, parece-me. enquanto o vendaval se eleva trapos e plásticos pelos ares. e a maresia resfolega ansiedade, e as ondas gigantes remoinham junto à costa. nada se consegue e é tudo muito triste. apesar de continuar a correr, a fazer jogging, num frio cortante e em céus nietzchianos.

17.1.04

em alturas que bebo muito alcóol tenho medo de dissolver os ossos num cancro.

16.1.04

sifões onde se segregam crustáceos. uma espécie de fogo ou de caçada, labirirntos e caves, sempre os labirintos, sempre as caves. caves casas, desabitadas, com ainda um cheiro de humanos agarrados às paredes e aos objectos.

15.1.04

a linha do combóio, juntando-se no ponto de fuga
a certidão do cansaço nas cervicais
as olheiras empobrecidas
o olhar
vazio

12.1.04

às vezes penso que o infinito também tem os seus próprios limites

10.1.04

pater familias

tenho andado a reler assim falava zaratustra. faz-me lembrar os meus sobrinhos quando estão mais desatinados, carentes, desorientados, com a mãe neurótica, inseguros, agressivos.
coitado do nietzche, também era infeliz, por isso andava sempre zangado e revoltado. eu gosto muitos meus sobrinhos. e do nietzche também.

narcismo

agora gostava de ter alguma coisa para escrever aqui. alguma coisa que depois me dissessem que tinham gostado.

8.1.04

sonhar

uma clareira de ferrugem, o bosque electromagnético, e os ramos do cancro.

6.1.04

revolta

vejo da janela um pinheiro manso, com o sol na sua casca. é a árvore do verão da minha infância. e é tão fácil escrever estas coisinhas assim. estas imagenzinhas manhosas "a árvore da minha infância". que escritazinha repugnante e tão "poética".
todos pró caralho!

testemunho

vinha sossegado no combóio, já quase de noite, a ler uma biografiazeca sobre himmler, quando vejo um velhinho simpático a olhar em volta. sentado muito aprumado no banco, com a barba de neve aparada com rigor, e com um chapéu quase tirolês de tafetá. e os seus olhos eram cansados, quase senis. era o herberto helder. vejo-o muitas vezes no combóio. e ninguém diria que aquele velhinho doméstico é um dos mais violentos e perturbadores poetas de sempre. enfim...

4.1.04

do avesso

por vezes penso que amar-te não é mais do que uma das facetas do meu egoísmo.

3.1.04

e lembra-se das paredes onde costuma investigar se existe tal coisa chamada eternidade, e por isso ouve música alucinatória, contra o eco dos espíritos, através de desertos bordejados por rios com alguma vegetação, linhas férreas que levam à morte, por entre a paisagem branca de neve e a negritude de um céu que se recusa em acreditar. e a água vai escorrendo pelas paredes, cristalina, pura como se esfolasse o ventre no fundo do rio, e as margens cheias de ferrugem e as fábricas que se erguem na paisagem, como deuses doentes, ou então os trilhos por onde caminhámos quando ainda queríamos ir ao encontro do pôr-do-sol,

1.1.04

e debaixo dos blocos de calcáreo, apodrecido pela lixiviação das águas pluviais, uma matriz coberta por árvores coralíferas, copas de esponja, quando da desglaciação, há dez mil anos, o mar a subir para cima das civilizações costeiras, e então a escrever-se o dilúvio, e os corpos esbranquiçados pela água a boiarem juntos, no meio dos sargaços e dos destroços, madeiras, as medusas penduradas na água, como se não fossem seres vivos, e as águas a subirem para cima do telhado das casas.
o dilúvio.